a tica dos esticos


A ÉTICA DOS ESTÓICOS
A Vida

Neste capítulo, vamos ter em consideração a vida e a obra de Cícero, Séneca e Marco Aurélio. Para além da leitura das suas obras, nomeadamente De Oratore, De
Officiis
e De Amicitia de Cícero, Da Vida Teliz e Cartas a Lucílio de Séneca e, por
último, Os Pensamentos de Marco Aurélio, consultámos a obra Pedagogia Moral de
Quintana Cabanas, A Comprehensive History of Western Ethics de Warren Ashby e
A Short History of Ethics de Alisdair MacIntyre.
Cícero, ou Marco Túlio Cícero, nasceu em Alpino, um pequeno município do Lácio meridional, a sudeste de Roma, a 3 de janeiro de 106 a C., de uma família da alta classe média. Chegado a Roma, Cícero completa os seus estudos com o objectivo de exercer a política e a advocacia, onde, num caso e noutro, conhece grande notoriedade. Depressa adquire fama no exercício da advocacia, sobretudo em causas de carácter político. A sua fama como advogado e a sua competência como orador elevaram-no, rapidamente, às mais altas magistraturas de Roma. Em 76 a C. foi questor na Sicília, em 70 a C. edil em Roma, em 66 a C. pretor e em 63 a C. ascende a cônsul, o mais alto cargo do regime republicano. Eleito cônsul em 63 a C., inicia uma notável carreira política, marcada por dois casamentos com duas mulheres da aristocracia romana. Casou, pela primeira vez, com cerca de 30 anos de idade, com Terência, que lhe proporcionou um significativo dote em dinheiro e propriedades. Aos 60 anos de idade, divorciou-se de Terência para casar com uma jovem rica, de nome Publília, uns anos mais nova do que a sua filha, de quem era tutor. A segunda união de Cícero não durou mais do que um ano, devido, provavelmente, a desentendimentos ocorridos após a morte da sua filha, Túlia, uns anos mais nova do que a sua segunda jovem mulher. Cícero teve dois filhos da sua união com Terência: Túlia e Marco. A morte da jovem Túlia, depois de três casamentos infelizes, provocou um grande desgosto em Cícero. O seu relacionamento com o filho, Marco, foi marcado por inúmeras desavenças e censuras. Com efeito, Marco defraudou todas as esperanças que Cícero depositou nele, preferindo o luxo e a ociosidade aos estudos e à política. Cícero viveu perseguido por dívidas avultadas durante quase toda a sua vida. Incapaz de parcimónia nos gastos, nem os dois casamentos com mulheres de grande fortuna foram suficientes para cobrir as suas enormes despesas. Apesar disso, Cícero era proprietário de uma dezena de "vilas", decoradas com luxo e espalhadas ao longo dos itinerários que mais vezes percorria. Tendo coleccionado um sem número de inimigos poderosos, Cícero foi assassinado, perto da sua casa de campo de Fórmias, em 7 de Dezembro de 43 a C., por homens de confiança de Marco António. Tinha 64 anos de idade. Em política, Cícero foi um moderado. Não sendo patrício nem plebeu, mas oriundo de uma rica classe média, e pertencendo à ordem equestre, foi o chefe de um partido republicano do centro, que reuniu o apoio de três camadas: a classe média rica, uma facção moderada dos patrícios, e uma facção moderada de plebeus. Durante os seus anos de cônsul, conseguiu evitar a conspiração de Catilina ( ficaram célebres os seus discursos contra Catilina, chamados "catilinárias"), mas a partir de 60. a C. a sua vida complicou-se muito. A chegada ao fim da República Romana e o triunfo das ditaduras e do Império coincidiram com o seu fim político. O ataque proferido, por Cícero, contra Marco António, com as celebres "filípicas", iria marcar o seu trágico fim. Com efeito, Marco António, uma vez chegado ao poder, não lhe perdoou os seus discursos e mandou os seus soldados assassinarem Cícero. Cícero foi um orador inflamado, mas também foi o autor de algumas obras importantes de filosofia e de ciência política. As obras De Republica e De Legibus,
embora profundamente influenciadas pelo pensamento de Platão e de Aristóteles,
constituem um importante legado teórico para se compreender o pensamento político de
uma dos maiores tribunos da República Romana. As milhares de cartas que nos deixou
constituem importante fontes para o estudo da história de Roma durante o último século
antes de Cristo.
Séneca, ou Lucius Séneca, nasceu no ano 4 a C., em Córdova, no seio de uma das mais ricas famílias hispano-romanas. Depois de estudar em Roma, iniciou uma
notável carreira política, tendo chegado a Senador. Foi preceptor de Nero. Os cinco anos
que decorreram sob o império de Cláudio e os primeiros de Nero, permitiram-lhe
publicar a sua importante obra, aumentar a sua fortuna e casar com uma rica patrícia de
Arles, de nome Paulina, a quem dedicou uma grande amor até à sua trágica morte no
ano de 65. Durante o período em que foi preceptor de Nero, o filósofo estóico dedicou-
lhe uma longa carta, a que deu o nome de Clemência, na qual defendeu uma monarquia
moderada, sem o recurso ao terror e à tirania. De nada valeu o seu esforço. Nero não só
ignorou os conselhos de Séneca, como conduziu o seu reinado ao sabor dos seus
excessos e vontade despótica. Afastado do senado em 62, Séneca retirou-se da política e
isolou-se na sua casa de campo dos arredores de Roma. Rodeado de inimigos, sem a
protecção do Imperador, Séneca começou a ser acusado de ter acumulado
ilegitimamente uma grande fortuna. Um ano antes do incêndio de Roma, escreveu as
Cartas a Lucilius. Em 65, deu-se uma conspiração de senadores contra Nero e o nome
de Séneca surgiu como um dos conspiradores. Na sequência da declaração do estado de
sítio, em Roma, Nero enviou uma delegação a casa de Séneca com o objectivo de o
matar. O cruel assassinato de Séneca constituiu um dos episódios mais chocantes do
reinado de Nero.
Marco Aurélio nasceu em 121 e faleceu em 180. Denominado o imperador- filósofo, foi sempre um grande admirador do helenismo. Escreveu em grego os seus
Pensamentos Para Si mesmo, que redigiu durante as noites de vigília, no meio dos
seus soldados, na campanha militar do Danúbio. Chegou a imperador aos 40 anos de
idade e reinou durante dezanove anos. A leitura dos seus Pensamentos leva-nos a
perguntar a razão pela qual deixou que continuassem as perseguições aos cristãos, dadas
as semelhanças entre a sua tábua de virtudes e a ética cristã.
A Obra

Com o império de Alexandre, a filosofia grega ultrapassa os limites do mundo helénico, para se estender ao Norte de África e a todas as regiões situadas junto do Mediterrâneo. Em Atenas, surgem, na Academia e no Liceu, duas importantes escolas que irradiarão a sua filosofia por todo o mundo helenístico e romano: a escola do Pórtico, onde surgiu o estoicismo, e a do jardim, que esteve na origem do epicurismo. Zenão de Cício (335-263) foi o fundador do estoicismo. A par dele, houve outras figuras importantes: Cleantes, Panécio e Posidónio. Mas o estóico de maior vulto foi Séneca, que estende o estoicismo ao império romano. O estoicismo começa por ser uma negação quer do platonismo quer do aristotelismo. Para os estóicos, apenas existem coisas materiais, capazes de impressionarem os nossos sentidos: "assim, atribuem uma natureza material a todas as realidades que se vêem forçados a admitir: deus e a alma, as virtudes, os sentimentos e até as acções, como andar e amar, têm um ser corpóreo. Para o estoicismo, a realidade universal é objecto da física, embora não considerem que ela tenha um valor em si: serve apenas de suposto prévio à ética, única parte da filosofia em relação à qual mostram um verdadeiro interesse" (1). Para os estóicos, o supremo bem está em viver de acordo com a natureza. As pessoas comuns correm atrás das paixões, submetem-se aos desejos e, com isso, apenas conseguem intranquilidade e angústia. O estóico, pelo contrário, sabe que tudo o que acontece não pode deixar de acontecer, pois nada se pode evitar nem nada se pode deplorar. Ao homem apenas resta a sua liberdade interior e a paz de espírito só se atinge com o autodomínio: "para um estóico, o princípio da moralidade assenta em distinguir o que depende de nós daquilo que nos é estranho. Segundo Zenão de Cício, o homem deve aceitar essa fatalidade universal, refugiar-se na sua interioridade, da qual poderá chegar a ser dono e senhor, e organizá-la segundo uma estrita consequência. Viver consequentemente é a forma de responder com elegância a essa certeza da própria situação" (2). A liberdade atinge-se quando se controlam as paixões e os bens exteriores. As paixões são impulsos que alteram a ordem universal. E são enganosas. O estóico domina as paixões não desejando nada. A apatia estóica é sinónimo de austeridade e ascetismo. Se o estóico desprezar os bens exteriores nunca sente falta daquilo que não tem: consegue ficar imperturbável. Cícero conheceu bem a filosofia estóica, tendo contactado com grandes filósofos gregos nas suas diversas estadas na Grécia, em Rodes e na Ásia Menor. Embora tivesse amigos entre os epicuristas e os estóicos, a filosofia ética de Cícero deve mais aos segundos do que aos primeiros. Cícero foi, contudo, um eclético. Embora o seu pensamento seja devedor da filosofia estóica, a vida que Cícero acabou por levar afastou-se muito dos ensinamentos de Zenão de Cício. Essa foi apenas uma das muitas contradições do filósofo. Há, em Cícero, "uma influência marcada de Platão e de Aristóteles, embora não seja um simples reprodutor dos filósofos gregos; ele é, aliás, quem mais contribui para difundir entre os romanos a filosofia grega. Por outro lado, Cícero é um dos mais distintos representantes do estoicismo, escola de pensamento que por esta altura estava já de tal maneira prestigiada em Roma que as suas ideias principais eram comuns a todos os homens cultos. As ideias características dos estóicos nesta época eram uma filosofia idealista; a ideia de que o princípio do mundo e da realidade é a razão (logos); a noção de devoção permanente ao dever e do controle de si mesmo; a existência de um Deus único cuja relação com os homens é igual ou semelhante à de um pai para com os filhos; a noção de igualdade fundamental entre os homens como membros de uma mesma família; a ideia de um Estado mundial e de uma cidadania universal; e finalmente a ideia de uma lei ou direito natural de origem divina" (3). Ao contrário dos epicuristas, de que Lucrécio foi um dos expoentes em Roma, Cícero considerava que a participação na vida da polis era um dever do cidadão. Foi essa a razão que o levou a ignorar os conselhos dos seus amigos epicuristas que, adivinhando o fim cruel de Cícero, o avisavam para se abster da vida política. Haverá, contudo, uma outra razão. Cícero foi um gastador inveterado. As despesas eram galopantes e a carreira política constituía a única forma, a par dos dois casamentos com duas jovens ricas, de gerar receitas capazes de cobrirem as dívidas acumuladas pela cerca de uma dezena de mansões que o filósofo mantinha na península itálica. Os três casamentos falhados da sua jovem filha, bem como a vida desregrada do filho, contribuíram, também, para a intranquilidade financeira de Cícero. Há, neste aspecto, semelhanças entre a vida de Cícero e a de Séneca. Ambos estóicos, não foram capazes de levar uma vida condizente com a ética estóica, que diziam defender. Ambos morreram assassinados às mãos dos seus adversários políticos. Ambos foram acusados de levarem uma vida faustosa. A ética estóica coloca, em lugar cimeiro, a virtude do autodomínio. O homem bom deve procurar a virtude na sua acção diária. À semelhança de Aristóteles, Cícero considera o homem um animal político. Era na polis que a virtude melhor se podia exercer, pois o político é mais importante do que o filósofo e que o moralista, porque enquanto o filósofo e o moralista "apenas conseguem persuadir um pequeno número de pessoas a seguir os seus conselhos, o político, através das leis que faz aprovar e do poder de comando que exerce, obriga todo um povo a fazer aquilo que os filósofos apenas só imporiam a um pequeno número de pessoas" (4). Cícero reconhece que a vida pública está cheia de perigos, mas, ainda assim, é necessária: "quanto ao perigo, o cidadão deve mostrar uma grande disponibilidade para dar generosamente à pátria uma vida que sempre seria necessário dar uma dia à natureza; não há que hesitar, assim, em adquirir pelos nossos próprios perigos, a tranquilidade de todos os cidadãos" (5). Sobre as formas de Governo, Cícero não se afasta muito da noção aristotélica. Reconhecendo a existência de três modalidades legítimas de Governo, a monarquia, a aristocracia e a democracia, Cícero opta por uma modalidade mista, uma vez que nenhuma destas três formas de Governo é suficientemente boa. A monarquia é inconveniente porque se presta a abusos sempre que se tem a pouca sorte de ser governado por um mau rei. A aristocracia tende a ser o governo dos ricos, esquecendo os direitos do povo. A democracia tende a ser o governo das multidões que, entregues às paixões, aos apetites e ao poder da inveja, pode gerar a tirania. Cícero conclui que a melhor constituição é a que reúne em justas proporções os três modos de governo. No fundo, Cícero defende que é necessário que o Governo tenha suficiente poder para governar, que o Parlamento tenha suficiente autoridade para fazer leis e que o Povo tenha suficiente liberdade para exercer algum controlo sobre o Governo e sobre o Parlamento. Cícero deve à ética estóica o conceito de direito natural. A ideia de que há uma direito natural, superior e anterior ao direito positivo, é profundamente grega. Essa ideia
surge, com toda a força, na Antígona de Sófocles e Aristóteles faz-lhe justiça ao
distinguir entre a lei positiva e a lei natural. É, no tratado De Republica, que Cícero
explicita a sua ideia de direito natural: "existe pois uma lei verdadeira, que é a recta
razão, conforme à natureza, presente em todos os homens, constante e sempre eterna.
Esta lei conduz-nos imperiosamente a fazer o que devemos, e proíbe-nos o mal
desviando-nos dele. O homem honesto não é nunca surdo aos seus comandos e
proibições: mas estes não têm efeito sobre o perverso. A essa lei nenhuma alteração é
permitida, e não é lícito revogá-la no todo ou em parte" (6).
Para Cícero, existe uma lei natural, enraizada na ordem natural, que foi criada por Deus e essa lei natural é descoberta pela razão humana. Repare-se: a lei natural,
para os estóicos, não é construída, nem inventada pela razão humana; é apenas
descoberta. Há aqui evidentes semelhanças com o cristianismo e, em particular, com a
ética de Paulo de Tarsus, tal como surge expressa nas Cartas de São Paulo.
Podemos encontrar, na defesa do direito natural, considerado por Cícero imutável e superior às leis positivas, a primeira origem da teoria dos direitos humanos. Na oratória, Cícero foi exímio, sendo considerado por todos como uma das grandes figuras da civilização romana. A sua influência foi tão grande que, durante toda
a Idade Média, foi um autor de leitura obrigatória nos estudos das Artes Liberais das
Universidades da Europa. O seu tratado De Oratore mantém, ainda hoje, grande
actualidade. A opção pelo carácter ético da oratória fica patente nas palavras de Cícero: "tenho para mim que um excelente orador, que seja ao mesmo tempo homem de bem, é o maior ornamento de uma cidade" (7). Contudo, a vida e o pensamento de Cícero são profundamente contraditórios. Noutras ocasiões, Cícero terá oportunidade de defender algo um pouco diferente: "só chamarei de orador pleno e perfeito, a quem for capaz de discorrer sobre tudo, com variedade e formosura" (8). A ideia de que a oratória e a eloquência são as artes da persuasão, defendida por Cícero, contradiz a tese da subordinação da eloquência à ética. Esta contradição no pensamento de Cícero explica-se pelo facto de ele ter sido, profissionalmente, um advogado e um político. E, num caso e noutro, Cícero era obrigado a fazer alianças que contradiziam a sua filosofia. É sobretudo, no tratado De Officiis, que Cícero desenvolve melhor o seu
pensamento ético. Podemos sintetizar, desta forma, esse pensamento: 1) importância dos deveres morais na vida; 2) há que procurar que a razão domine o apetite, que é o mais importante para o cumprimento das obrigações; 3) o conhecimento ocupa-se da investigação da verdade; a vontade ocupa-se das acções; 4) há que saber aguentar as dificuldades da vida sem incomodar os outros para além do que for absolutamente necessário; 5) devemos evitar o mal em todas as situações; 6) a educação moral faz-se, em primeiro lugar, na família; 7) a posse das virtudes é superior à posse de todas os bens exteriores. Séneca foi, provavelmente, o maior filósofo ético e pedagogo moral da civilização romana. Embora considerasse que a formação ética começava na família,
Séneca dava uma importância muito grande à relação mestre-discípulo. Preceptor de
Nero e de Lucílio, teve oportunidade de levar à prática, com pouco êxito, a sua
pedagogia moral. Para ajudar na educação de Nero, escreveu o tratado Da Clemencia e
para o seu discípulo Lucílio, escreveu as Cartas a Lucílio. À semelhança de Cícero,
nem sempre a vida de Séneca pagou tributo à sua filosofia ética. Gastos excessivos,
amor ao luxo, adulação e vingança foram apenas alguns dos vícios que marcaram a vida
de Séneca.
Para Séneca, "a sabedoria está em conduzir a própria vida conforme à razão, cumprindo um programa duplo: o domínio dos afectos da alma e o saber enfrentar impassivelmente as mudanças da fortuna" (9). Nas Cartas a Lucílio, Séneca dá respostas à questão: como educar moralmente
uma pessoa? Séneca é optimista. Considera que todas as pessoas trazem as sementes de uma vida honesta, embora os bons hábitos e os bons exemplos tenham um papel primordial na adopção das virtudes. A educação moral consiste em fazer com que os actos correspondam aos princípios éticos. Por vezes, a vontade é fraca ou deficiente. Nessas alturas, faz falta um director espiritual. O homem possui uma natureza que o predispõe quer para o bem quer para o mal e nem sempre possui a força de vontade e a sabedoria suficientes para a adopção do bem em prejuízo do mal. O director espiritual, com a sua vigilância e bons conselhos, fortalece a força de vontade. E Séneca recomenda: "exige que eu não seja igual aos melhores, mas apenas melhor do que os maus; isso basta; fazer cada dia alguma poda nos meus vícios e evitar os meus erros" (10). E ainda: "habituemo-nos a fugir dos luxos e a medir as coisas pela utilidade que nos proporcionam.Aprendamos a apoiar-nos nos nossos próprios membros.a temperar o desejo de glória, a mitigar a ira, a olhar com bons olhos a pobreza, a praticar a frugalidade, ainda que muitos se envergonhem dela" (11). No Da Vida Feliz, dirigido ao seu irmão Gallion, Séneca dá-nos a
conhecer a sua teoria da felicidade. Fazendo justiça à sua raiz estóica, Séneca começa por avisar: "é por isso que a primeira coisa a fazer é não seguir, como uma ovelha, o rebanho das pessoas que nos precedem, pois nesse caso encaminhar-nos-íamos, não para onde é necessário ir, mas para onde vai a multidão. No entanto, nada nos arrasta mais para grandes males do que a conformação à voz pública, o pensar que o melhor está ligado ao assentimento do grande número, de tal modo que vivemos, não de acordo com a razão, mas por espírito de imitação" (12). Alertando contra os malefícios da opinião da multidão, Séneca argumenta: "a opinião da multidão é indício do pior. Procuremos, pois, aquilo que é o melhor e não o que é mais comum, aquilo que nos colocará na posse de uma felicidade eterna e não o que tem a aprovação do vulgar, que é o pior intérprete da verdade" (13). A vida feliz é a que respeita a natureza, procura a beleza interna, as coisas sólidas e não as aparentes. É à natureza que cada um deve dar a sua consciência, porque a sabedoria reside em não nos afastarmos dela, em nos conformarmos com a Lei Natural, mantendo a alma sã, o corpo saudável, fugindo das inquietações e dos prazeres aparentes e fugidios. Apaziguamento da alma e não intranquilidade. Alegria perene e não exaltação. Ausência de admiração em relação aos bens exteriores, porque o verdadeiro prazer está no desprezo dos prazeres. É que a vida feliz "é uma alma livre, elevada, sem medo, constante, inacessível ao receio e ao desejo; para quem só existe um bem, a beleza moral, e um único mal, a indignidade" (14). Os bens exteriores, a fama e as honras não passam de algazarras confusas que não retiram nem acrescentam nada à felicidade e que desaparecem tão depressa como surgem. Pelo contrário, os bens interiores dão "uma satisfação contínua, uma alegria profunda que vem do fundo do ser, porque a alma satisfaz-se com as suas riquezas e nada deseja que lhe seja estranha. O que valem a seu lado as emoções corporais ténues, fúteis e sem duração? No dia em que se for vencido pelo prazer, ser-se-á também vencido pela dor" (15). É por isso que o homem vencido pelos prazeres fica prisioneiro das dores. A liberdade ausente só pode ser reencontrada com o repouso da alma, a elevação do espírito, o afastamento dos medos, a bondade de um coração satisfeito com o que recebe e o olhar satisfeito para o que existe no mais profundo de cada um de nós. Ninguém pode ser feliz fora da verdade. Sem um juízo recto e firme, a alma é uma vagabunda que vagueia, sem abrigo, à procura de tudo aquilo que reluz. Mas a intensidade do brilho dos bens exteriores é apenas aparente, pois "o prazer desvanece-se ao alcançar o ponto mais elevado; tem um espaço limitado e por isso o ocupa depressa; depois vem o aborrecimento, e, após um primeiro impulso, o prazer murcha" (16). Quanto mais a alma se fixa na aparência das coisas, mais insatisfeita fica. Ao invés, é feliz a alma que se contenta com o que tem e que ama aquilo que tem. Sobre o carácter inconstante e equívoco do prazer, Séneca argumenta: "que dizer do facto do prazer existir tanto nos bons como nos maldosos, e que os seres baixos tenham tanto prazer nas suas infâmias como as pessoas honestas nas suas boas acções? Por isso, os Antigos prescreveram que se procurasse a vida mais virtuosa e não a mais agradável, de modo a que o prazer seja não o guia mas o companheiro de uma vontade íntegra e boa" (17). E sobre as características do homem bom, acrescenta: "um homem não se deixa corromper nem dominar pelas coisas exteriores, não admira nada a não ser ele próprio, tem fé na sua energia, está pronto para a boa e a má sorte, é artesão da sua própria vida; nele a confiança não deve existir sem o saber, nem o saber sem a firmeza; as suas resoluções, uma vez tomadas, devem persistir e nenhuma rasura deve ser feita sobre as decisões que adoptar. Compreende-se, mesmo que eu nada acrescente, que um tal homem terá uma vida equilibrada e ordenada, e que será benévolo e magnânimo nos seus actos" (18). Quando a alma está de acordo consigo mesma e a harmonia preside à nossa vontade, evitamos as dissensões e afastamo-nos dos vícios. Agindo assim, abrimos o caminho para a vida feliz. A tábua das virtudes de Séneca coloca, em lugar cimeiro, o autodomínio, mas também dá relevo à harmonia, força de vontade, frugalidade, modéstia e moderação. Como vícios, destaca a arrogância, a estima exagerada por si próprio, a presunção, a inveja, o orgulho, a preguiça e a mordacidade. A origem dos vícios reside numa vontade fraca que subordina a razão aos prazeres fortuitos, porque "aquele que persegue o prazer coloca todas as coisas em segundo plano, é indiferente à liberdade e sacrifica tudo ao seu estômago, não comprando de modo nenhum os prazeres, mas, pelo contrário, a eles se vendendo" (19). O homem sábio, pelo contrário, opta pelos prazeres da alma, os quais são calmos, inesgotáveis, ternos, moderados e discretos. Séneca repete, amiúde, a máxima: a verdadeira felicidade está na virtude. E o que nos aconselha a virtude? A evitar aquilo que nos afasta dela. Quando não nos afastamos da virtude, estamos aptos a ganhar aquilo que vale a pena, pois é graças à virtude que "não sofrerás o constrangimento, não sentirás a falta de nada, estarás livre e em segurança; nenhum dano te poderá atingir; nada tentarás em vão e não encontrarás obstáculos; tudo acontecerá segundo a tua vontade; nada poderá acontecer que te contrarie, que seja contra a tua expectativa e a tua vontade" (20). Sabendo que a sua vida contradizia as suas palavras, Séneca apresenta a sua defesa: "dizem-me: Falas de uma maneira, vives de outra. Essa foi, seres maldosos e hostis até aos mais virtuosos sem excepção, a objecção feita a Platão, feita a Epicuro, feita a Zenão; porque todos esses homens diziam não como viviam, mas como deveriam viver. É da virtude que falo, não de mim; quando me ergo contra os vícios, é antes de mais contra os meus que o faço: quando puder, viverei como deve ser" (21). Marco Aurélio foi, à semelhança de Séneca, um estóico interessado em apontar caminhos que levem à harmonia da alma com o corpo e da razão com a acção. Os seus
Pensamentos constituem, ainda hoje, uma obra de leitura muito agradável, onde é
possível encontrar importantes ensinamentos na arte de viver.
Marco Aurélio, nos Pensamentos, chama a atenção para os ensinamentos que
recebeu do pai, do irmão e de alguns dos seus amigos. Do exemplo do pai, recebeu uma autêntica tábua de virtudes: "em meu pai se revia a mansidão mas também a firmeza inabalável nas decisões estudadas com peso e detenção; a indiferença à vanglória tirada do que o mundo chama honrarias; o amor do trabalho e a perseverança; a atenção prestada aos que eram capazes de trazer algum aviso útil ao bem público; a justiça sempre feita a cada qual inflexivelmente consoante o mérito; a experiência que tinha para ajuizar quando se precisava de um esforço grande ou se bastava um agir mais frouxo.; o bastar-se a si mesmo em tudo sem perder a serenidade; o prever de longe e o dispor com antecipação os negócios, atendendo à minúcia deles sem posturas teatrais; o calar as aclamações e lisonjas dirigidas à sua pessoa; a vigilância dedicada sem quebra aos grandes interesses do Império; a administração económica dos proventos públicos e a tolerância para com os que o criticavam nestas matérias" (22). A tábua de virtudes de Marco Aurélio não se afasta da tábua dos estóicos: piedade, simplicidade, autodomínio, auto-respeito e gentileza. Marco Aurélio coloca no centro das suas relações morais, tanto o indivíduo como a sociedade. A vida ética significa viver de acordo com a natureza, que é o mesmo que viver no respeito pela razão e de acordo com a virtude. A defesa do cosmopolitismo, tão cara a Marco Aurélio, não é mais do que a assunção do carácter universalista do Império Romano, o qual não deixou, contudo, de respeitar as tradições locais. A razão é o único instrumento da vida moral. É a razão que deve clarificar as nossas relações e as nossas actividades, dando sentido às coisas e ordem ao mundo. A vida feliz é entendida como aquela em que a pessoa é capaz de um controlo adequado das paixões, das emoções e dos instintos, por parte da razão. É também uma vida caracterizada pelo respeito do dever e das obrigações e, sobretudo, o predomínio dado aos bens da alma: "há quem procure lugares de retiro no campo, na praia, na montanha; e acontece-te também desejar estas coisas em grau subido. Mas tudo isto revela uma grande simplicidade de espírito, porque podemos, sempre que assim o quisermos, encontrar retiro em nós mesmos. Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais isento de ruídos, que na alma, sobretudo quando se tem dentro dela aqueles bens sobre que basta inclinar-se para que logo se recobre toda a liberdade de espírito, e, por liberdade de espírito, outra coisa não quero dizer que o estado de uma alma bem ordenada" (23). Sobre a natureza da injustiça e da impiedade, Marco Aurélio afirma: "o homem injusto não passa de um ímpio. A natureza universal, tendo formado os seres racionais uns para os outros, quis que se entreajudassem segundo os dons que cada qual recebeu, sem se danarem de modo algum. O homem que transgride este desígnio da natureza comete evidentemente uma impiedade para com a mais venerável das divindades. A mentira é, por igual, uma impiedade para com o mesmo nome.Portanto o homem que mente voluntariamente atenta contra a piedade, pois que, intrujando, comete uma injustiça; o mesmo se diga do que mente involuntariamente, porque destoa na natureza universal enfrentando-a, hostilizando a natureza do mundo" (24).
Notas

1) Gambra, R. (1993). História da Filosofia. Lisboa: Planeta Editora, p. 69.

2) idem, p. 70
3) Freitas do Amaral, D. (1998). História das Ideias Políticas - vol. I. Coimbra:
Livraria Almedina, p. 137
4) idem, p. 139
5) ibid, p. 139
6) Cícero (1965). De La République - Des Lois (tradução e notas de Charles Appunh).
Paris: Garnier-Flammarion, citado em Freitas do Amaral, D. (1998). História das
Ideias Políticas
- vol. I, p. 146
7) Cícero (1967). Diálogos. Del Orador. Buenos Aires: Fabril Editora, p. 84.
8) idem, p. 20
9) Quintana Cabanas, J. (1995). Pedagogia Moral: El Desarrollo Moral Integral.
Madrid: Dykinson, p. 303
10) Séneca (1966). Obras Completas. Madrid: Aguilar, p. 294
11) idem, p. 206
12) Séneca (1994). Da Vida Feliz. Lisboa: Relógio D`Água, p. 42
13) idem, p. 43
14) ibid, p. 46
15) ibid, p. 46
16) ibid, p. 48
17) ibid, p. 49
18) ibid, p. 49
19) ibid, p. 56
20) Ibid, p.58
21) ibid, p. 60
22) Marco Aurélio (1995). Pensamentos. Lisboa: Relógio D`Água, I, 16, p. 13
23) idem, IV, 3, p. 37
24) ibid, IX, 1, p. 111

Source: http://www.ese.ipsantarem.pt/usr/ramiro/docs/etica_pedagogia/A%20%C3%89TICA%20DOS%20EST%C3%93ICOS.pdf

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