Cap 06

Norma lingüística &
preconceito social:
questões de
terminologia

sócio-lingüísticos subjacentes ao uso do sociolingüísticas, o conceito de norma não Instituto de Letras (Departamento de Lingüística), vezes, é citada com nome e sobrenome, isto é, vem seguida de algum qualificativo que tenta defini-la mais especificamente. Dentre os adjetivos usados para qualificar a norma, o mais comum, certamente, é o adjetivo culta, e a expressão norma culta circula livremente nos jornais, na televisão, na internet, nos livros didáticos, na fala dos professores, nos manuais de redação das grandes empresas jornalísticas, nas gramáticas normativas, nos textos científicos sobre língua etc.
A maior dificuldade em lidar com a norma culta é o fato de ela ter dupla personalidade. Realmente, por trás desse rótulo — norma culta — se escondem dois conceitos bastante diferentes — na verdade, antagônicos — quando se trata da língua que falamos e escrevemos.
O primeiro desses conceitos é o que poderíamos chamar do senso comum, tradicional ou ideológico, e é aquele que tem mais ampla circulação na sociedade. Na verdade, trata-se muito mais de um preconceito do que de um conceito propriamente dito. E que preconceito é esse? É o preconceito de que existe uma única maneira “certa” de falar a língua, e que seria aquele conjunto de regras e preceitos que aparece estampado nos livros chamados gramáticas. Por sua vez, essas gramáticas se baseariam, supostamente, no uso feito por um grupo muito especial e seleto de pessoas, os grandes escritores da língua, que também costumam ser chamados de “os clássicos”. Inspirados nos usos que aparecem nas grandes obras literárias, sobretudo do passado, os gramáticos tentam preservar esses usos compondo com eles um modelo de língua, um padrão a ser observado por todo e qualquer falante que deseje usar a língua de maneira “correta”, “civilizada”, “elegante” etc. É esse modelo que recebe, tradicionalmente, o nome de norma culta. Vamos ver, por exemplo, como alguns importantes gramáticos definem o seu trabalho e, dentro dele, Os filólogos Celso Cunha (brasileiro) e Lindley Cintra (português), ao apresentarem sua Nova gramática do português contemporâneo, assim escrevem: “Trata-se de uma tentativa de descrição do português atual na sua forma culta, isto é, da língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cᔠ(1985: xiv).
Já Rocha Lima, em sua Gramática normativa da língua portuguesa, declara: “Fundamentam-se as regras da Gramática Normativa nas obras dos grandes escritores, em cuja linguagem as classes ilustradas põem o seu ideal de perfeição, porque nela é que se espelha o que o uso idiomático estabilizou Evanildo Bechara não usa o adjetivo culta, mas também se refere à literatura. Assim, na mais recente edição de sua Moderna gramática da língua portuguesa, ele explica: “A gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos % e dicionaristas esclarecidos” (1999: 52). Mas quem é que diz se um determi- nado escritor é ou não é correto? E, pior ainda, quem define se este ou aquele gramático é ou não esclarecido? O autor não explica, o que pode levar a gente a pensar que é ele próprio quem vai atribuir a si mesmo autoridade bastante para estabelecer esses critérios de classificação (inclusive para qualificar a si mesmo de “gramático esclarecido”).
Evitando falar de literatura, o conhecido compêndio gramatical de Domingos Paschoal Cegalla, Novíssima gramática da língua portuguesa, é apresentado do seguinte modo: “Este livro pretende ser uma Gramática Normativa da Língua Portuguesa, conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na época atual” (1990: xix). Muito bem. Mas quem são essas pessoas cultas? Que critérios o autor utilizou para classificá-las assim: onde, quando e com que metodologia científica? Ele não esclarece, e o que vemos, consultando o livro, é que os exemplos são tirados ou de sua própria imaginação ou, mais Mais complicada ainda é a situação dos programas de televisão e textos de imprensa assinados por Pasquale Cipro Neto. Consultando os roteiros do programa Nossa Língua Portuguesa (www.tvcultura.com.br), por exemplo, encontra-se uma profusão de termos e expressões, empregados sem a menor distinção: “linguagem formal”, “texto formal”, “uso culto”, “padrão formal”, “padrão culto”, “língua culta”, “norma culta”. Em nenhum momento o autor se dá ao trabalho de definir o que entende com os substantivos “linguagem”, “padrão”, “língua” e “norma” e com os adjetivos “culto” e “formal”, tomando-os todos como plenamente equivalentes, como sinônimos perfeitos. Essa inconsistência terminológica reflete uma inconsistência teórica, conceitual, e deixa evidente o despreparo do autor para lidar com esses temas.
Todos esses autores, ao definir assim a língua culta, ou forma culta, ou norma culta, ocupam o lugar que lhes cabe numa longuíssima fila de estudiosos da língua que, há mais de 2.500 anos, associam língua culta com escrita literária.
Essa é uma tradição que começou por volta do século III antes de Cristo, entre os filósofos e filólogos gregos, quando foi criada a própria disciplina batizada de gramática. Aliás, sintomaticamente, a palavra gramática, em grego, significava, na origem, “a arte de escrever”. Ao se interessar exclusivamente pela língua dos grandes escritores do passado, ao desprezar totalmente a língua falada (considerada “caótica”, “ilógica”, “estropiada”), e também ao classificar a mudança da língua ao longo do tempo de “ruína” ou “decadência”, os fundadores da disciplina gramatical cometeram um equívoco que poderíamos chamar de “pecado original” dos estudos tradicionais sobre a língua (Lyons, 1968: 14). Foram eles e seus seguidores, de fato, que plantaram as sementes do preconceito lingüístico, que iam dar tantos e tão amargos frutos ao longo dos séculos seguintes. Foram eles que sacralizaram na cultura ocidental o mito de que existe “erro” na língua, uma crença que teve tanto tempo para se cristalizar, para se petrificar, que é praticamente impossível convencer as pessoas do contrário.
E também foi a partir do trabalho deles que surgiu o conceito de “língua” como algo de sobrenatural, um saber quase esotérico. Ao longo dos séculos, os defensores dessa concepção tradicional isolaram a língua, a retiraram da vida social, a colocaram numa redoma, onde deveria ser mantida intacta, “pura” e preservada da “contaminação” dos “ignorantes”. Por isso, até hoje, o professor de português ou, mais especialmente o gramático, é visto como uma espécie de criatura incomum, um misto de sábio e mágico, que detém o conhecimento dos mistérios dessa “língua”, que existe fora do tempo e do espaço — e é esse “saber misterioso” que costumo chamar de “norma oculta”.
(O vigor dessa tradição é tamanho que, como sabemos, até mesmo a Lingüística moderna, surgida no limiar do século XX, não conseguiu resistir a ele e acabou sucumbindo a seu peso, muito embora alegasse assumir uma postura científica de oposição à Gramática Tradicional [cf. Salomão, 1999: 62]. Assim, podemos dizer que não houve uma verdadeira ruptura entre a Gramática Tradicional e a Lingüística moderna, em suas primeiras versões estruturalistas, uma vez que é possível perceber uma linha contínua na qual “as reflexões lingüísticas percorreram cerca de 2.500 anos tratando a língua como entidade objetificada, como sistema de cuja constituição se exclui o sujeito” [Miranda, 2001: 79]. Portanto, essa “norma culta”, na sua qualidade de “língua” descontextualizada, tem todas as características do que Bakhtin [1977: 86-87] chama criticamente de “objetivismo abstrato”, termo com que designa as opções epistemológicas detectáveis no programa científico de Saussure [1916]. É isso que permitiu a Bourdieu [1996: 31] comparar a langue saussuriana à “língua legítima” ou “língua oficial”, também comumente chamada Esse é, então, o primeiro conjunto de idéias que se esconde debaixo do rótulo norma culta: uma língua ideal, baseada (supostamente) no uso dos grandes escritores (do passado, de preferência), um modelo abstrato (que não corresponde a nenhum conjunto total de usos da língua por parte de seus falantes de carne e osso). Esse modelo de língua ideal acaba criando uma grade de critérios antagônicos empregada para qualificar os usos da língua: certo vs. errado, bonito vs. feio, elegante vs. grosseiro, civilizado vs. selvagem e, é claro, culto vs. ignorante. Assim, o que não está nas gramáticas não é norma culta: é “erro crasso”, é “língua de índio”, “português estropiado” ou, simplesmente, “não é português”. O próprio nome do idioma — português —, então, deixa de designar toda e qualquer manifestação falada e escrita da língua por parte de todo e qualquer falante nativo, e passa a designar exclusivamente esse ideal abstrato de língua certa, essa “norma oculta” que só uns poucos iluminados conseguem apreender e dominar integralmente. Não é à-toa, portanto, que tanta gente diga que “não sabe português” ou que Mas eu disse que havia um outro conjunto de noções contido no rótulo norma culta. A outra definição que se dá ao rótulo norma culta se refere à linguagem concretamente empregada pelos cidadãos que pertencem aos segmentos mais favorecidos da nossa população. Esta é a noção de norma culta que vem sendo empregada em diversos empreendimentos científicos como, por exemplo, o Projeto NURC (Norma Urbana Culta), que desde o %" início dos anos 1970 vem documentando e analisando a linguagem efetivamente usada pelos falantes cultos de cinco grandes cidades brasileiras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), sendo estes falantes cultos definidos por dois critérios de base: escolaridade superior completa e antecedentes biográfico-culturais urbanos. Trata-se, portanto, de um conceito de norma culta, um termo técnico estabelecido com critérios relativamente O que as pesquisas científicas feitas no Brasil nos últimos trinta anos têm revelado é o seguinte: existe uma diferença muito grande entre o que as pessoas em geral chamam de norma culta, inspiradas na longa tradição gramatical normativo-prescritiva, e o que os pesquisadores profissionais chamam de norma culta, um termo técnico para designar formas lingüísticas que existem na realidade social. Essa diferença se reflete também na postura que a pessoa assume diante dos fatos lingüísticos. As pessoas que usam a expressão norma culta como um pré-conceito tentam encontrar em todas as manifestações lingüísticas, faladas e escritas, esse ideal de língua, esse padrão pré-estabelecido que, como uma espécie de lei, todos têm obrigação de conhecer e de respeitar — como é virtualmente impossível encontrar esse modelo abstrato na realidade dos usos, os defensores dessa noção de norma culta consideram que praticamente todas as pessoas, de todas as classes sociais, falam “errado”.
Essa ideologia pessimista aparece bem estampada na entrevista de Pasquale Cipro Neto ao jornal O Globo do dia 24 de novembro de 2002. Para ele, somente 0,1% dos brasileiros conseguem falar “certo”, sem “tropeçar numa concordância”. (E o pior é que o entrevistador ainda diz que Pasquale tem “autoridade para falar”: só se for para proferir bobagens desse tamanho sobre a realidade lingüística brasileira, sem o menor embasamento científico.) As pessoas que, por outro lado, usam a expressão norma culta como um conceito, como um termo técnico, agem exatamente ao contrário: elas primeiro investigam a língua realmente usada pelos falantes cultos, para depois dizer o que são estes usos lingüísticos, por meio de instrumental teórico consistente. Com base nessa investigação e nessa análise é que os lingüistas podem afirmar, por exemplo, que o pronome cujo desapareceu da língua falada no Brasil, inclusive da língua falada pelos brasileiros classificados de cultos; que o futuro simples do indicativo (eu cantarei) também não faz parte da língua materna dos brasileiros, sobrevivendo apenas na escrita mais formal; que os pronomes oblíquos de 3ª pessoa (eu a conheço) não fazem parte da nossa língua materna, e assim por diante.
Portanto, como é fácil perceber, estamos diante de um problema. Temos um único nome para designar coisas completamente diferentes. Se quisermos resumir bem claramente essas diferenças conflitantes, podemos montar a No meio desse tiroteio, como é que a gente fica? A quem vamos atribuir a faixa de Miss Norma Culta? A situação é tão complicada, o terreno é tão movediço que, muitas vezes, até mesmo na literatura científica, que geralmente procura ser o mais criteriosa possível, os autores escorregam no chão pantanoso e se deixam levar pelas ambigüidades contidas na expressão norma culta (ou por seus próprios preconceitos inconscientes) e passam sem perceber de um conjunto de idéias para o outro, deixando o pobre do leitor em dúvida sobre qual é, de fato, o fenômeno que está sendo tratado ali. Isso ocorre sobretudo quando estudiosos de outras áreas de conhecimento (história, sociologia, antropologia, educação, comunicação, filosofia etc.) escrevem sobre questões Será que tem algum jeito de a gente resolver isso? Felizmente, me parece que sim. Mas antes de propor uma solução terminológica, vamos discutir ainda Por mais que os estudiosos sérios das questões lingüísticas se sintam incomodados, é preciso reconhecer que, mesmo como termo técnico, como %$ ferramenta da investigação científica, a expressão norma culta revela um longo processo de impregnação ideológica que tem de ser criticado e desmascarado.
Para começar, quando alguém diz que uma determinada norma, que uma determinada maneira de falar e de escrever é culta, automaticamente está deixando entender que todas as demais maneiras de falar e de escrever não são cultas — são, portanto, incultas, com todos os sentidos possíveis capazes de se abrigar por trás da palavra inculto: “rude”, “tosco”, “grosseiro”, “bronco”, “selvagem”, “incivilizado”, “cru”, “ignaro”, “ignorante” e por aí vai, e vai longe.
Ora, do ponto de vista sociológico e antropológico, simplesmente não existe nenhum ser humano que não seja culto, isto é, que não participe de uma cultura, que não tenha nascido dentro de um grupo social com seus valores, suas crenças, seus hábitos, seus preconceitos, seus costumes, sua arte, suas técnicas, sua língua. (Faraco, 2002). A questão, como bem sabemos, é que no senso comum só se considera culto aquilo que vem de determinadas classes sociais, as classes sociais privilegiadas. Quando dizemos que uma pessoa é muito “culta”, que tem muita “cultura”, estamos dizendo que ela acumulou conhecimentos de uma determinada forma de cultura, uma entre muitas: no caso, a cultura baseada numa escrita canonizada, a cultura livresca, a cultura que é fruto da produção intelectual e artística valorizada pelas classes sociais favorecidas, detentoras do poder político e econômico.
E os pesquisadores que têm utilizado o termo culto para qualificar um determinado grupo de falantes, para classificar os brasileiros com escolaridade superior completa e vivência urbana, se deixaram levar por esse mesmo jogo ideológico — eu inclusive, em vários trabalhos anteriores (Bagno, 2000; 2001), até ser questionado por pessoas mais atentas e que sofriam na pele o estigma de não serem classificadas de “cultas”.
Por outro lado, muitas vezes, para tentar designar as variedades lingüísticas usadas pelos falantes sem escolaridade superior completa, moradores da zona rural ou das periferias empobrecidas das grandes cidades, aparece freqüentemente na literatura lingüística a classificação língua popular, norma popular, variedades populares etc. Cria-se com isso uma distinção nítida entre norma culta e norma popular (Lucchesi, 2002).
Novamente, podemos perguntar: culto e popular são antônimos? Ou, mais grave ainda, popular e inculto são sinônimos? Na definição de povo só entram as pessoas que não pertencem às classes sociais privilegiadas? O povo brasileiro são todos os 170 milhões de pessoas que vivem aqui, ou “somente” os 135 milhões que têm pouco ou nenhum acesso aos direitos civis, aos bens sociais, à educação, à moradia, ao lazer, ao consumo, a uma alimentação digna etc.?2 Existe cultura sem povo ? Existe povo inculto ? Já vimos que não. Mas numa sociedade extremamente (e desigualmente) dividida como a nossa, o adjetivo popular é muitas vezes usado com conotações pejorativas, depreciativas, para indicar algo de menor importância, de menor valor na escala de prestígio social.
Segundo dados do IBGE (www.ibge.net), 78.4% dos brasileiros recebiam, em 1999, menos de 10 salários mínimos. Isso perfazia um total de mais de 133 milhões de pessoas. Como a população restante, de aproximadamente 35 milhões, já constitui um mercado interno capaz de altos índices de consumo, nunca foi necessário, pela lógica do capitalismo neoliberal aqui implantado a partir de 1994, ampliar esse mercado interno, pois o já existente, equivalente à população total da Espanha, por exemplo, dava conta de absorver a oferta da indústria, do comércio e dos serviços. Essa política só tem servido para aumentar os índices de concentração de renda no país. Para maiores discussões, Essa visão extremamente preconceituosa de povo aparece bem estampada na reportagem de capa da revista Veja de 7 de novembro de 2001, assinada por João Gabriel de Lima3 . Ali, depois de elogiar os atuais defensores do prescritivismo gramatical que invadiram a mídia brasileira contemporânea, o autor passa a atacar as novas concepções de ensino de língua propostas por lingüistas profissionais e baseadas no reconhecimento da variação lingüística como um dos eixos das práticas pedagógicas: “Trata-se de um raciocínio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do ‘povo’.” Um pouco antes, no mesmo parágrafo, o repórter menciona as críticas feitas pelos lingüistas ao trabalho de pessoas como Pasquale Cipro Neto e escreve: “Elas ecoam o pensamento de uma certa corrente relativista, que acha que os gramáticos preocupados com as regras da norma culta prestam um desserviço à língua”. Temos assim, num só parágrafo, o uso tradicionalista e dogmático de “norma culta” e a atribuição reacionária de “ignorância” ao povo, ou seja, o não-reconhecimento de uma cultura popular, expressa também na língua.
Chamar a língua usada pelos falantes plenamente escolarizados de norma culta é tão preconceituoso quanto usar esse rótulo para designar aquele ideal de língua abstrato, inspirado na literatura do passado e nas prescrições da gramática normativa. Do mesmo modo, separar a realidade lingüística em norma culta e norma popular, mesmo tentando conferir a esses termos uma tecnicidade objetiva, científica, revela uma escolha que pode ser facilmente Padrão, prestígio e estigma: que tal assim? Mesmo usando terminologias que apresentam algumas diferenças entre si, as pessoas que se dedicam a estudar a nossa realidade sociolingüística concordam em identificar, nas relações entre língua e sociedade no Brasil, três “coisas” bem distintas. Vamos ver que “coisas” são essas: 1. A primeira é a “norma culta” dos prescritivistas, ligada à tradição gramatical normativa, que tenta preservar um modelo de língua ideal, inspirado na grande literatura do passado.
2 . A segunda é a “norma culta” dos pesquisadores, a língua realmente empregada no dia-a-dia pelos falantes que têm escolaridade superior completa, nasceram, cresceram e sempre viveram em 3 . A terceira é a “norma popular”, expressão usada tanto pelos tra- dicionalistas quanto pelos pesquisadores para designar um conjunto de variedades lingüísticas que apresentam determinadas características fonéticas, morfológicas, sintáticas, semânticas, lexicais etc. que nunca ou muito raramente aparecem na fala (e na escrita) dos falantes “cultos”.
Lima, J. G. Falar e escrever, eis a questão. Revista Veja de 07 de novembro de 2001.
Esta “norma popular”, como já vimos, predomina nos ambientes rurais, onde o grau de escolarização é nulo ou muito baixo. Predomina também nas periferias das cidades, para onde acorrem os moradores do campo expulsos pela criminosa tradição latifundiária deste país, responsável pelo surgimento das favelas e dos cinturões de miséria que envolvem todas as zonas urbanas brasileiras (onde se concentra hoje a maior parte da nossa população!).
A primeira e a segunda “coisas”, já sabemos, recebem um mesmo nome mas são, essencialmente, intrinsecamente, diferentes uma da outra. Se quisermos levar adiante nossa discussão, teremos de dar a cada uma delas um nome diferente.
Assim, para designar o modelo ideal de língua “certa”, muitos lingüistas têm proposto o termo norma-padrão (Mattos e Silva, 1995; Bagno, 2002; Faraco, 2002; Lucchesi, 2002, entre outros). Ele serve muito bem, me parece, para designar algo que está fora e acima do uso efetivo da língua, algo que paira como um “arco-íris imóvel sobre o fluxo da língua”, conforme escreveu Bakhtin (1977: 123). Embora algumas pessoas também usem as expressões língua-padrão, dialeto-padrão e variedade-padrão, prefiro ficar com norma- padrão, porque, se é ideal, se não corresponde integralmente a nenhum conjunto concreto de manifestações lingüísticas regulares e freqüentes, não pode ser chamada de “língua”, “dialeto” nem de “variedade”. É uma norma, no sentido mais jurídico do termo: “lei”, “ditame”, “regra compulsória” imposta de cima para baixo, decretada por pessoas e instituições que tentam regrar, regular e regulamentar o uso da língua. E é também um padrão : um modelo artificial, arbitrário, construído segundo critérios de bom gosto vinculados a uma determinada classe social, a um determinado período histórico e num Quanto à segunda “coisa”, que os pesquisadores chamam de “norma culta”, também já discutimos o quanto de preconceito vem embutido no adjetivo culta. Se quisermos fugir dessa noção estereotipada e excludente de “cultura”, precisamos encontrar um modo alternativo de designar as variedades lingüísticas faladas pelos cidadãos com alta escolarização e vivência urbana. Eu proponho aqui a palavra prestígio, muito empregada na literatura sociológica. Afinal, como nessa problemática toda o que está realmente em jogo não é a língua, propriamente dita, mas sim o prestígio social dos falantes, deixo aqui a sugestão para que a gente passe a tratar de variedades de prestígio ou variedades prestigiadas.
É bom ressaltar que o prestígio social das variedades lingüísticas usadas pelas classes favorecidas, dominantes, não tem nada a ver com qualidades intrínsecas, com algum tipo de “beleza”, “lógica” ou “elegância” inerente e natural a essas maneiras de usar a língua. Esse prestígio social é uma construção ideológica: por razões históricas, políticas, econômicas é que determinadas classes sociais — e não outras — assumiram o poder, ganharam prestígio ou, melhor, atribuíram prestígio a si mesmas. É aquilo que Bourdieu (1996) chama de “ato de magia social”. Num passe de mágica, as origens históricas desse prestígio são esquecidas (Bourdieu chama isso de “amnésia da gênese”) e aquilo que vem do alto, das classes dominantes, é considerado indiscutivelmente bom, bonito, digno de ser imitado, e passa a ser considerado como um valor natural, incontestável, como se suas qualidades brotassem da própria natureza das coisas. No mesmo movimento, tudo o que não se encaixa nesse modelo é considerado “feio”, “indigno”, “corrompido”, “inculto”. Aliás, a palavra prestígio, em latim, significava exatamente isso: “ilusão atribuída a causas sobrenaturais ou a sortilégios; magia; artifício usado para seduzir, para encantar; fascinação, atração, encanto, magia”.
Por fim, como designar a “norma popular”, sem incorrer no perigo de identificar popular com inculto, errado, estropiado.? Na literatura sociolingüística, é comum opor prestígio a estigma. O estigma, em termos sociológicos, é um julgamento extremamente negativo lançado pelos grupos sociais dominantes sobre os grupos subalternos e oprimidos e, por extensão, sobre tudo o que caracteriza seu modo de ser, sua cultura e, obviamente, sua língua. Assim, para designar as variedades lingüísticas que caracterizam os grupos sociais desfavorecidos do Brasil (ou seja, a maioria da nossa população), sugiro que a gente passe a empregar a expressão variedades estigmatizadas.
VARIEDADES
PRESTIGIADAS
VARIEDADES ESTIGMATIZADAS
Acredito, sinceramente, que com esta nova terminologia podemos designar com mais precisão os três fenômenos lingüísticos que queremos Como é possível notar pelo desenho, o prestígio e o estigma atribuídos a uma variedade lingüística são uma questão de mais e de menos. Entre as variedades mais prestigiadas e as variedades mais estigmatizadas há toda uma zona intermediária, onde as influências de umas sobre as outras são intensas e constantes. Isso é mais do que natural numa sociedade complexa como a & brasileira contemporânea, sobretudo por causa dos meios de comunicação de massa (principalmente a televisão e o rádio).
Quanto à norma-padrão, ela fica lá no alto, na estratosfera da abstração, do virtual. É verdade que ela exerce uma influência muito forte sobre o imaginário de todos os brasileiros, mas é uma influência que vai diminuindo progressivamente, quanto mais a gente se afasta das camadas sociais privilegiadas. A norma-padrão está estreitamente ligada à escola, ao ensino formal, e como no Brasil o acesso à educação é mais um elemento que contribui para a nossa triste posição de campeões mundiais da desigualdade social, é fácil imaginar que a norma-padrão tradicional tem poder de influência praticamente nulo sobre os falantes das variedades mais estigmatizadas. Assim, mais uma vez, somos obrigados a reconhecer o caráter esotérico da norma- padrão: só se aproximam dela (mas nem por isso conseguem usá-la plenamente) os brasileiros que conseguiram passar pelo funil da educação formal e conseguiram percorrer até o fim todo o trajeto de sua formação escolar.
Norma-padrão e ensino de português no Brasil A norma-padrão que ainda vigora no imaginário brasileiro se compõe de um conjunto de regras que, cada vez mais, parecem estranhas para o falante nativo do português brasileiro, mesmo para o falante urbano escolarizado. Lucchesi (2002) faz a seguinte pergunta, de fato intrigante: “por que falantes que foram expostos por mais de quinze anos a um determinado padrão normativo não refletem esse padrão no seu comportamento lingüístico usual?” Por que as pessoas que percorreram todo o trajeto escolar, passando pelos onze anos do ensino fundamental e médio, mais quatro anos de ensino superior, não empregam “corretamente” as regras gramaticais que compõem esse padrão lingüístico? Esse padrão que, supostamente, deveria refletir o uso das camadas privilegiadas da população? A resposta é muito simples, embora a situação social seja complexa. Os falantes urbanos plenamente escolarizados não empregam a norma-padrão tradicional porque ela entra em choque o tempo todo com a intuição lingüística desses falantes; as regras que a norma-padrão cobra da gente não atendem mais às nossas necessidades e expectativas de comunicação, de interação verbal, de atividade social por meio da linguagem. A norma-padrão tradicional se transformou numa espécie de código secreto, que só é usado em situações extremamente formalizadas, quase rituais: é o código criptografado da doxa.
Algumas pessoas costumam alegar que a norma-padrão deve ser preservada, inclusive na escola, porque ela representaria um modelo lingüístico para os usos da escrita mais monitorada. Só que isso também já deixou de ser verdade. Mesmo nos gêneros textuais escritos mais formais, mais monitorados, a norma-padrão já perdeu muito terreno para as regras lingüísticas que caracterizam as variedades prestigiadas do português brasileiro contemporâneo (ver exemplos em Bagno, 2001).
A distância entre a norma-padrão tradicional e as variedades prestigiadas é tão grande que muitas pessoas com escolaridade superior completa, inclusive professores de português, não conseguem perceber os supostos “erros” que os defensores da tradição normativista detectam a torto e a direito. E por que isso acontece? A sociolingüística tem mostrado que quando determinadas regras lingüísticas rejeitadas pela norma-padrão tradicional se cristalizam na língua das classes sociais privilegiadas, e principalmente na escrita mais monitorada, é porque essas regras já se incorporaram definitivamente à gramática da língua, uma vez que a escrita mais monitorada, como se sabe, é mais conservadora e leva mais tempo para absorver as variantes inovadoras, que se manifestam primeiramente na língua falada. Quando os falantes privilegiados de uma sociedade param de reagir desfavoravelmente a determinados usos lingüísticos, quando param de considerá-los como “erros”, é porque o ideal de língua “certa” já mudou, num processo de auto-regulação natural e inerente aos grupos sociais, que independe da ação prescritivista das instâncias oficiais e oficiosas que pretendem controlar os destinos do idioma.
A norma-padrão brasileira (brasileira?) se afasta tremendamente da realidade dos usos lingüísticos dos cidadãos brasileiros em geral e até mesmo dos falantes urbanos escolarizados das classes médias e médias altas. É absolutamente necessário, urgente e indispensável que a gente faça aquilo que Faraco exige de nós: “travar uma guerra ideológica ao normativismo” (2002).
Porque é disso mesmo que se trata: de ideologia. A norma-padrão que paira acima de nós como uma espada pronta para decepar nossas cabeças há muito tempo já deixou de ser um instrumento de regulação lingüística: é, sim, um instrumento de opressão ideológica, de perseguição, de patrulha social, de discriminação e preconceito. Atualizar o padrão, admitir como válidas as regras lingüísticas que já fazem parte da língua de todos os brasileiros, é uma obrigação política de todas as pessoas realmente comprometidas com a democratização deste país. E é precisamente o que o mesmo Faraco escreve (2002): “Contrapor-se a esse quadro não é tarefa fácil, embora fundamental se considerarmos a relevância, numa sociedade do porte da nossa, da ampla difusão social dos padrões realistas de língua, junto com a democratização dos bens da cultura escrita. O desafio é criar condições para uma crítica da atitude normativista, de modo a favorecer a criação de um novo patamar conceitual que permita o rompimento, no ensino e no uso do padrão, das amarras que hoje impedem sua apropriação como bem cultural pelo conjunto da população. E essa não é uma tarefa apenas para especialistas, porque ela é, de fato, de natureza política. Só um debate público, amplo e irrestrito, poderá desencadear o processo de necessário redesenho do padrão e da E ele conclui o seu artigo com estas palavras: “Flexibilizando o padrão na prática, poderemos, então, dirigir nossos esforços, no ensino e nas atividades cotidianas, para aquilo que de fato importa: o domínio das práticas socioculturais de leitura e de produção de textos.” Realmente, como venho insistindo em dizer ultimamente, é preciso que a escola brasileira se conscientize de que o verdadeiro papel do ensino de & língua não é ensinar uma norma-padrão obsoleta e repressiva, não é “ensinar gramática”, isto é, levar o aluno a decorar nomes e definições para em seguida fazer análises morfológicas e sintáticas mecânicas e estéreis. O verdadeiro objetivo da educação lingüística é oferecer condições para o ininterrupto letramento dos estudantes: para que eles desenvolvam cada vez mais e melhor as habilidades de leitura e de produção de textos e possam se inserir plenamente na cultura letrada (cf. Soares, 1999). Se nós conseguirmos fazer isso, estaremos promovendo uma verdadeira revolução neste país.
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